STJ amplia proteção do herdeiro vulnerável e garante o direito real de habitação

O falecimento de um ente querido é, por si só, um momento de profunda dor e reconfiguração familiar. Além do luto, a família se depara com a complexidade do inventário e da partilha de bens, um processo que, muitas vezes, levanta questões delicadas e até mesmo conflitos. Entre os temas mais sensíveis nesse contexto, figura o Direito Real de Habitação, um instituto jurídico criado para proteger o cônjuge ou companheiro sobrevivente, assegurando-lhe o direito de permanecer na moradia da família após a morte do parceiro.
Tradicionalmente, a lei brasileira (art. 1.831 do Código Civil) limitava essa proteção ao cônjuge ou companheiro. Contudo, em uma decisão histórica e humanizada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um passo fundamental ao ampliar essa garantia. O Tribunal decidiu que, em situações excepcionais, o herdeiro vulnerável, mesmo sem ser cônjuge ou companheiro, pode ter reconhecido o seu Direito Real de Habitação, priorizando a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à moradia.
O que é o direito real de habitação e sua função original?
Para entender a magnitude da decisão do STJ, é crucial revisitarmos o conceito original do Direito Real de Habitação. Imagine uma situação em que um casal vive por décadas em um único imóvel, que é o lar da família. Com o falecimento de um dos cônjuges, os filhos e outros herdeiros poderiam, em tese, exigir a venda do imóvel para partilhar a herança. Isso significaria que o cônjuge ou companheiro sobrevivente, que muitas vezes dedicou sua vida àquele lar, poderia ser obrigado a se mudar, ficando desamparado em um momento de fragilidade.
Foi para evitar esse desamparo que o Direito Real de Habitação foi instituído. Sua função primordial é assegurar ao cônjuge ou companheiro do falecido seu direito constitucional à moradia, impedindo que seja despejado do único imóvel integrante do patrimônio a ser partilhado, onde residiu toda sua vida com a pessoa falecida. Trata-se, portanto, de uma garantia vitalícia e personalíssima, que visa proteger não apenas um teto, mas o “lar” e o vínculo afetivo e psicológico construído naquele espaço.
O desafio jurídico: herdeiros vulneráveis sem cônjuge sobrevivente
Apesar de sua nobre função, a aplicação literal da lei (art. 1.831 do Código Civil) criava uma lacuna preocupante. E se o falecido não deixasse cônjuge ou companheiro, mas sim um filho com deficiência, um idoso dependente ou outro herdeiro em situação de extrema vulnerabilidade, que residia na casa da família e dependia economicamente do falecido? A lei silenciava sobre esses casos, e os tribunais de primeira e segunda instância, em muitos momentos, interpretavam a norma de forma restritiva, negando o benefício a esses herdeiros.
Foi exatamente essa a questão central do Recurso Especial nº 2.212.991 – AL, analisado pela Terceira Turma do STJ, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi.
O caso concreto: a luta pelo lar de um herdeiro curatelado
No caso em questão, os pais faleceram deixando seis filhos e um único imóvel, que era a casa da família. Um dos filhos, Rangel, era curatelado (ou seja, estava sob a tutela legal de um curador devido à sua incapacidade, no caso, esquizofrenia paranoide) e residia na propriedade, dependendo economicamente dos falecidos. Seu irmão, Erik, que também morava no imóvel e era seu curador, buscou na justiça o reconhecimento do Direito Real de Habitação para Rangel, argumentando a sua extrema vulnerabilidade.
Os tribunais de primeira e segunda instância, contudo, negaram o pedido. A sentença e o acórdão do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL) sustentaram que a lei só concedia esse direito ao cônjuge sobrevivente, não sendo possível uma interpretação extensiva que prejudicasse os direitos de propriedade dos demais herdeiros. A argumentação era que o direito real de habitação é uma prerrogativa restritiva e não poderia ser estendida para além do legalmente previsto.
A virada humanitária no STJ: relativização e dignidade
No entanto, o STJ, em uma visão mais abrangente e alinhada aos princípios constitucionais, deu provimento ao recurso especial, revertendo as decisões anteriores. A Ministra Relatora, Nancy Andrighi, enfatizou que, embora a lei não mencionasse expressamente herdeiros vulneráveis, o fundamento do Direito Real de Habitação é a proteção de um direito fundamental: a moradia e, por extensão, a dignidade da pessoa humana.
A corte destacou que:
- A finalidade social do Direito Real de Habitação: Não é apenas uma regra rígida, mas um instrumento para garantir a moradia e evitar o desamparo. O próprio STJ já havia consolidado o entendimento de que esse direito “não é absoluto e, em hipóteses específicas e excepcionais, quando não atender a finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação”;
- Conflito de direitos fundamentais: Em uma situação de conflito entre o direito de propriedade dos herdeiros capazes e o direito à moradia de um herdeiro vulnerável, a dignidade e a proteção do mais fraco devem prevalecer. A Relatora argumentou que negar o direito à moradia ao herdeiro curatelado “implicará em efetivo prejuízo existencial e material, bem como se terá sua dignidade aviltada”;
- Não interferência na propriedade: O Direito Real de Habitação concede apenas o direito de uso para moradia, não alterando a esfera da propriedade do imóvel, que continua sendo dos herdeiros;
- Vulnerabilidade e dependência: No caso de Rangel, era uma “premissa fática imutável dos autos” que o imóvel era sua moradia, que ele dependia economicamente dos pais e que sua condição de saúde o impedia de garantir sua própria subsistência. Os outros cinco herdeiros eram maiores, capazes e não dependiam do imóvel.
Um olhar para o futuro: O Projeto de Lei nº 4/2025
É interessante notar que a interpretação do STJ está em consonância com as discussões legislativas atuais. O Ministro Moura Ribeiro, em seu voto-vista, destacou que um projeto de reforma do Código Civil (Projeto de Lei nº 4/2025), atualmente em tramitação no Senado Federal, já prevê a extensão do Direito Real de Habitação a “descendentes incapazes ou com deficiência, bem como aos ascendentes vulneráveis” e até a “pessoas remanescentes da família parental que demonstrem convívio familiar comum”.
Isso demonstra que tanto o Poder Judiciário quanto o Legislativo estão caminhando na mesma direção, reconhecendo a necessidade de adaptar as leis à realidade social, com foco na proteção dos mais vulneráveis e na concretização dos direitos fundamentais.
A importância de um suporte jurídico especializado
Questões sucessórias, como o Direito Real de Habitação, são inerentemente complexas e carregadas de emoção. A recente decisão do STJ, embora progressista, demanda uma análise minuciosa de cada situação familiar para que os direitos sejam plenamente reconhecidos.
Se sua família enfrenta um processo de inventário e existe um herdeiro em situação de vulnerabilidade que pode se beneficiar dessa nova interpretação, é fundamental buscar orientação jurídica especializada.



