STJ decide: falta de escritura ou contrato não invalida doação disfarçada de empréstimo

O que acontece quando um empréstimo é usado para mascarar uma doação?
Em um caso peculiar envolvendo um ex-casal e a disputa por um imóvel comprado durante o casamento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou um princípio jurídico importante: a falta de formalidade, como escritura pública ou contrato particular, não invalida uma doação dissimulada de empréstimo, desde que fique comprovada a transferência gratuita de bens. A decisão traz mais clareza para situações em que transações financeiras envolvem simulação ou disfarce de intenção.
Nosso escritório preparou este artigo para explicar como o STJ fundamentou sua decisão e o que pessoas em situações semelhantes podem aprender com este precedente.
O caso: doação disfarçada e a disputa após o divórcio
A situação analisada pelo STJ envolveu um homem que, durante o casamento, sob o regime de separação de bens, transferiu valores para que sua então esposa adquirisse uma propriedade rural. A transação, porém, foi registrada como um empréstimo nas declarações de Imposto de Renda, para mascarar a verdadeira natureza do negócio. Após o divórcio, a ex-esposa vendeu o imóvel, e o ex-marido recorreu à Justiça alegando que os recursos usados na compra do bem deveriam ser considerados um empréstimo e exigindo a devolução dos valores.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no entanto, afastou a tese de “empréstimo” e reconheceu que a transação foi, na verdade, uma doação dissimulada, cujo objetivo era oferecer suporte financeiro à esposa. A decisão foi mantida pelo STJ, que confirmou que a ausência de escritura pública ou contrato particular não invalida o reconhecimento da doação disfarçada, sobretudo porque a intenção de doar os recursos foi demonstrada pelas provas do processo.
O que é a simulação relativa e qual sua implicação?
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, destacou que a situação configura o que o Direito Civil chama de simulação relativa. Esse conceito jurídico acontece quando as partes, propositalmente, disfarçam a verdadeira natureza de um negócio jurídico, muitas vezes com o objetivo de evitar o pagamento de impostos ou requisitos legais.
No caso específico, chamou atenção o fato de que:
- O “empréstimo” registrado nas declarações de Imposto de Renda era, na verdade, uma doação feita por liberalidade do ex-marido à sua então esposa.
- O negócio real (doação) foi mascarado na tentativa de evitar as formalidades legais previstas no artigo 541 do Código Civil, que exige escritura pública ou contrato particular para validar uma doação dessa natureza.
- Não havia expectativa de reembolso: os valores fornecidos nunca foram cobrados pelo doador, evidenciando o caráter gratuito da transferência.
A ministra foi enfática ao afirmar que os requisitos formais não podem ser usados para beneficiar quem tentou dissimular o verdadeiro negócio jurídico, especialmente quando isso acarretar prejuízo a terceiros, como o fisco ou eventuais adquirentes do bem doado.
Por que a doação foi reconhecida mesmo sem formalização?
De acordo com o artigo 541 do Código Civil, para que uma doação seja formalmente válida, ela precisa ser registrada por escritura pública ou, no caso de bens móveis, por contrato particular. Contudo, o STJ entendeu que, neste caso, exigir a formalidade seria “proteger o doador que tentou dissimular a doação por motivos pessoais”.
A ministra Nancy Andrighi explicou:
“Exigir a solenidade do artigo 541 do Código Civil significaria reconhecer a invalidade da doação. Com isso, proteger-se-ia o doador que tentou dissimular, por motivos pessoais, o verdadeiro negócio jurídico celebrado e se prejudicariam terceiros.”
Ou seja, a ausência de formalidades não impede o reconhecimento da doação quando há provas claras e consistentes da intenção de doar (animus donandi). No caso em questão, além de o TJSP ter identificado registros contábeis e declarações fiscais que comprovavam a doação dissimulada, ficou evidente que a ex-esposa nunca foi cobrada pelos valores recebidos, reforçando a natureza de doação.
O animus donandi: a intenção por trás da doação
Um dos pontos centrais para a decisão foi a análise do animus donandi, termo em latim que significa “intenção de doar”. Essa intenção é essencial para caracterizar uma doação, mesmo em situações onde a formalidade do negócio não foi cumprida.
A decisão destacou que:
- A doação foi feita por liberalidade: O ex-marido ofereceu os recursos para viabilizar a compra da propriedade, sem intenção de reembolso ou cobrança futura.
- A ex-esposa não tinha condições financeiras de adquirir o imóvel sem os recursos doados.
- Nunca houve cobrança dos valores por parte do doador: Durante o casamento e mesmo após a separação, os valores não foram exigidos de volta, demonstrando a intenção inequívoca de conceder os recursos como uma doação.
Com base nesse conjunto de evidências, o STJ concluiu que a operação foi válida e que a tentativa do ex-marido de reverter a transação como um empréstimo não tinha respaldo jurídico.
Conclusão: o contexto fala mais alto que a formalidade
A decisão do STJ no caso da doação disfarçada de empréstimo evidencia que, no Direito Civil, a substância do negócio jurídico prevalece sobre sua forma. Ainda que uma relação tenha sido registrada como “empréstimo”, o reconhecimento do “animus donandi” e outras evidências podem revelar a verdadeira intenção das partes. Por outro lado, o uso de requisitos legais para tentar reverter um negócio cometido em dissimulação não será acolhido pela Justiça caso a má-fé seja evidente.



